
'Minhas fotos representam momentos históricos': em entrevista, Sebastião Salgado explicou suas escolhas na fotografia 5028f
Nessa entrevista de 2024, fotógrafo relembrou sua trajetória marcante e sua visão sobre o impacto sociocultural de suas imagens 3i1s5z
*Essa entrevista foi publicada originalmente na edição 9 da revista Velvet, em janeiro de 2024. Sebastião Salgado morreu nesta sexta-feira, 23, aos 81 anos 1t4t14
Nos anos 1970, o mundo de Sebastião Salgado mudou. Como quem olha para um buraco negro e descobre o sentido da vida, o brasileiro natural de Aimorés (Minas Gerais) teve a vida transformada após olhar pelo visor de uma antiga câmera Leica. Foi quando ele largou tudo e se tornou um dos maiores fotojornalistas do mundo.
Hoje, mais de 50 anos depois, Sebastião segue em Paris, para onde se mudou em 1969, mas suas imagens viajam o planeta: tanto no imaginário de quem já viu suas coberturas de conflitos na África, quanto na exposição “Amazônia”, em cartaz na Europa e que faz um retrato humanístico e histórico da região que considera “um dos únicos paraísos na terra”.
Sebastião, vamos voltar um pouquinho para o ado. Você é economista graduado, pós-graduado, com mestrado, e enveredou para o fotojornalismo. Como a fotografia entrou na sua vida?
Para usarmos o termo moderninho, a fotografia me atropelou. A Lélia estava fazendo arquitetura na universidade, em Paris, e compramos uma câmera para ela fazer fotografias de edifícios. Quando olhei pela primeira vez pelo visor daquela câmera, a minha vida mudou. Vi que poderia materializar tudo aquilo que me revoltava, o que me entusiasmava, o que achava bonito, interessante. Foi tão mágico que, em poucos meses, eu queria abandonar tudo e virar fotógrafo. Mas eu estava terminando um doutorado em economia, tive uma proposta para trabalhar em uma organização internacional de renome, e fiz isso. Mas levei a câmera em uma missão à África pelo banco em que trabalhava à época e sentia muito mais prazer com as fotos do que com relatórios. Tive que tomar uma decisão. Ou abandonava a fotografia ou a economia.
A minha vida sempre foi viajar. Já estive em mais de 130 países e eu os conheci mesmo. Trabalhei muito. Tenho prazer em correr riscos, viver dentro de um fenômeno fotográfico, ir até o limite. É um desafio permanente
Na sua história, você trabalhou em algumas agências de fotografia, como a Sygma, a Gamma e a Magnum. Atuou também com grandes fotógrafos, como (Robert) Capa e Henri Cartier-Bresson. Como surgiu a oportunidade de viver tudo isso?
O primeiro grande fotógrafo que conheci foi o Cartier-Bresson quando vim para Paris. Fomos morar em um pequeno quarto. A proprietária disse que, como eu queria ser fotógrafo, iria apresentar um amigo dela que trabalhava com fotografia: era o Cartier-Bresson. Acabamos ficando amigos e, depois, eu descobri que ele era o maior fotógrafo do mundo. ei pela Sygma muito rapidamente e fiquei quatro anos na Gamma, que foi a minha escola de fotojornalismo.
Foi dentro da Magnum que, em 1981, você fez a famosa foto do atentado do Ronald Reagan. Como foi essa história?
Na hora em que ele estava no Hotel Hilton, fazendo uma conferência com líderes da indústria de construção americana, tive o instinto de sair da sala e ficar na porta do hotel. Quando coloquei a câmera para fotografá-lo saindo, escutei os tiros. Os outros fotógrafos não fizeram muita coisa. Ganhei muito dinheiro com isso, mas não queria ser conhecido como o fotógrafo do atentado do presidente. Financeiramente falando, aquele momento foi importante, mas profissionalmente não foi nada.
E você escolhia os trabalhos que queria fazer?
Eu sempre escolhi trabalhar na África. Fui mais de 50 vezes. Conheço praticamente todos os países, cobri muitas guerras, deslocamentos de populações refugiadas, convocações sociais. Trabalhar na América Latina foi algo que escolhi. Se eles precisavam de alguém para fazer fotos das minas de estanho da Bolívia, eu ia. As minhas fotografias representam um pouco o momento histórico.
Quando eu era jovem, 90% da população brasileira morava no campo, agora mais de 95% mora na cidade. Tudo provocado por essa grande revolução no sistema produtivo brasileiro
Os livros “Êxodos” e depois o “Retratos das Crianças de Êxodo” surgiram das suas viagens na África ou foi algo planejado a partir da sua mentalidade como economista, que queria retratar como a situação econômica impacta a vida dessas pessoas?
Foi uma opção de vida. Tive um privilégio dentro dessas agências de ter uma compreensão da sociedade. Nos anos 1980, quando começamos a ver o fim da primeira revolução, com a saída do trabalho manual da linha produtiva, quis fazer um retrato da classe trabalhadora antes que ela desaparecesse. ei seis, sete anos procurando tudo o que pudesse referenciar o fim desse período. Transformei em um livro, teve um sucesso colossal, fizemos uma grande exposição. Ninguém falava em globalização, mas acredito que mostrei a base desse fenômeno nas minhas fotografias, e percebi um movimento interessante na migração das indústrias siderúrgicas e automotivas para países de terceiro mundo com grandes extensões territoriais, fartos em matéria-prima e muita mão de obra.
Agora, além de talento e formação, que são únicos, você esteve em lugares com condições precárias, correndo riscos. De onde vem essa coragem, Sebastião?
Lembra aqueles antigos despertadores, em que você dava corda, mas quando via por dentro, estava tudo quebrado e pensava “Como isso funciona">
Sebastião, você já disse em entrevistas que acredita que a Amazônia talvez seja a única parte do mundo que é um paraíso. Ainda pensa assim?
Tem dois espaços em que eu já estive fotografando e que considero quase impossível representar suas respectivas dimensões: um é a Amazônia e o outro é a Antártida. Não existe doença na Amazônia, aquelas águas, daqueles rios, no interior da floresta, podem ser bebidas e a pessoa não adoece. Os indígenas têm uma saúde colossal, exceto nas regiões em que foram atacados pela penetração da nossa sociedade de consumo, pela violência dos garimpeiros e de alguns marginais da floresta, como o pessoal da droga. É fora do comum. Existem por volta de 400 culturas diferentes dentro da Amazônia, talvez seja a maior concentração cultural do planeta.
Quando fui à sua exposição “Amazônia”, por conta da organização das salas com ambientação única, era como estar dentro de um filme sobre aquelas imagens expostas…
As fotografias são minhas, é claro, mas o conceito da apresentação é da Lélia. Ela esteve comigo na maioria das viagens e queria que as pessoas se sentissem dentro da floresta. A única luz daquela exposição vem da Amazônia, das imagens. Altamente bem concebido, desenhado. Existe uma estabilidade de luz ali dentro que te permite deslizar e viver dentro da Amazônia. Acho fantástico. A Lélia tem um gosto maravilhoso
Falando sobre ela… Como é um casamento que tem ainda essa parceria profissional?
Tive uma grande sorte de ter uma companheira de vida, já que vão fazer 60 anos que estamos juntos. Uma mulher linda, um negócio fantástico do ponto de vista relacional, físico, sexual. De ter nossos filhos, uma aventura. De determinar uma vida quando ainda éramos jovenzinhos, no Espírito Santo. Fomos exilados juntos. Ela aceitou largar uma vida confortável em Londres para morar em um quarto de empregada em Paris, trabalhar como arquiteta em agências para garantir o nosso pão e me permitir seguir a fotografia. Sempre me incentivou. É muito mais do que uma esposa, é uma companheira. Eu não sei onde eu termino e onde a Lélia começa. Adoro a minha mulher, tenho um respeito imenso por ela.
De certa forma, o Instituto Terra promoveu uma viagem ao ado reflorestando a Mata Atlântica, em uma região em que você cresceu. Como você olha para esse trabalho hoje?
Ali eu nasci, cresci e, hoje, voltei para fechar o ciclo. As amplas terras do Instituto Terra, conheço como as linhas da minha mão. Andei aquilo tudo quando era menino. Lélia propôs que replantássemos a floresta que existia ali antes. Achei uma ideia fantástica. Rodei o planeta atrás de recursos, ando o chapéu, e conseguimos. Temos mais de 3 milhões de árvores plantadas. Agora, com investimentos, estamos comprando mais terras em volta e seremos quatro vezes maiores do que somos hoje. E trabalhamos com mais de 3 mil proprietários, recuperando fontes de água e plantando pequenas florestas com 500 árvores.
Se você para e olha bem para uma árvore, percebe uma infinidade de bichos e insetos que moram ali. Agora, se você multiplica por milhões, é imenso. É o coração cheio. Tão bonito, tão fantástico
Quais são os projetos que você está preparando para o futuro?
Tenho editado meus arquivos. Estou com 80 anos, se tudo der certo, eu tenho em média mais 10 anos. Ainda fotografo, vou ar algumas semanas no Brasil fotografando. Tenho uma exposição no ano que vem, no sul da Itália, sobre a pesca artesanal de atum, chamado “Matança”. ei um tempo fabuloso com esses pescadores e tem uma história religiosa, a arquitetura romana. Vamos ter uma exposição em São Paulo, no ano que vem, no Museu da Imagem e do Som, com as fotografias da Revolução dos Cravos, que marcou o fim do salazarismo em Portugal. Imagens que vão fazer 50 anos e que foram tiradas logo no início da minha carreira, quando eu estava apenas há um ano atuando como fotógrafo. Estou trabalhando nesses arquivos, ainda tenho muito a apurar.
Não é a máquina fotográfica, o instrumento de captação, que faz a imagem. É o espírito da coisa. Fotografia é memória, é corte representativo de uma sociedade. É algo que você imprime, guarda